Vozes Negras, às terças-feiras, no Justificando (Replicado aqui às quartas)
Por Andrey Régis de Melo
Louvor
a este povo varonil
que ajudou a construir
a riqueza do nosso Brasil
(Samba-enredo Mangueira/1975)
Na madrugada de 14 de novembro de 1844, no atual Município de Pinheiro Machado – RS, aproximadamente cem negros foram mortos e os sobreviventes aprisionados pelas forças imperiais de Duque de Caxias. Uma das vertentes históricas indica que o episódio conhecido como “Massacre dos Porongos” foi marcado pela traição do Gen. David Canabarro, líder farroupilha, que teria facilitado o ataque, fulminando a esperança de liberdade dos lanceiros negros que engrossaram o exército gaúcho na Guerra dos Farrapos.
O caso ocorrido no Cerro dos Porongos é um bom começo para chegarmos até a morte de João Alberto Silveira Freitas, homem negro que foi agredido e asfixiado por seguranças, no dia 19 de novembro de 2020, no interior do hipermercado Carrefour, em Porto Alegre. O encontro entre os dois fatos históricos diz respeito às relações de poder que permeiam desde sempre a vida da população negra no Brasil. E o exercício do poder no âmbito das relações raciais brasileiras, historicamente, é marcado pelo severo controle de corpos negros e indiscriminada distribuição de suspeição.
A morte de Beto passa pela recordação de que os escravizados foram submetidos ao que se pode denominar de economia política do castigo – “sustentá-los para que não perecessem e castigá-los para que produzissem”[1] –, o corpo era o alicerce da economia colonial e o castigo reproduzia as relações de produção. De outro lado, a violência racial no hipermercado reivindica uma reflexão sobre o período que antecede a abolição do regime escravocrata, como não era mais possível agrilhoar o negro à unidade produtiva, que era seu lugar até então, houve a construção da suspeição generalizada em desfavor da população negra:
A cidade que escondia, porém, ensejava aos poucos a construção da cidade que desconfiava, que transformava todos os negros suspeitos. É essa suspeição que Eusébio de Queiroz está preocupado em afirmar: ‘qualquer’ ajuntamento de escravos deve ser dissolvido; ’os que nele se encontrarem’ devem ser presos; os ’que se tornarem suspeitos’ devem ter o mesmo destino. A suspeição aqui é indefinida, está generalizada, todos são suspeitos.[2]
No Séc. XXI, observa-se a existência de um Estado de Policialismo normatizado (exceção), o controle e a suspeição dos corpos negros acentuam-se com o urbanismo militar (militarização das práticas policiais[3]), política de segurança pública caracterizada pela supressão de direitos e garantias (busca pessoal indiscriminada), controle agressivo de corpos em abordagens policiais, estabelecimento de fronteiras internas delimitadas por barreiras militares e a construção de inimigos internos racializados.
Post original: https://www.justificando.com/2020/12/08/corpo-e-suspeicao-o-covarde-espancamento-de-um-homem-negro/