Esse texto vem como início de uma parceria do Instituto Ella com o jornal Justificando. Republicaremos todas às quartas-feiras a coluna “Vozes Negras” deste jornal.
Por Isadora Brandão
Em entrevista concedida no último dia 20 de novembro, o vice-presidente da República, General Hamilton Mourão, afirmou categoricamente “e com toda a tranquilidade” que não existe racismo no Brasil.
Para comprovar o seu argumento, o militar recorreu à corriqueira comparação com os Estados Unidos, onde morou por 2 anos, durante o final da década de 60. Segundo ele, na escola que frequentava, “o pessoal de cor” andava separado. Ele também declarou ter ficado impressionado ao constatar que as pessoas negras eram obrigadas a ocupar os assentos traseiros dos ônibus.
A declaração despertou curiosidade: como o general terá sido racialmente classificado na sociedade estadunidense? Teria sido ele destinatário da hostilidade racial que descreveu? Como tal experiência impactou na sua auto-identificação racial e na sua leitura a respeito da pertinência da luta antirracista na diáspora?
Na sociedade estadunidense vige a regra da hipodescendência, segundo a qual uma pessoa que tenha “uma gota de sangue” negro é considerada negra. Assim, é bem provável que o general, sobretudo por ser latino, não tenha escapado às violentas práticas discriminatórias que descreveu com pretenso distanciamento…
Como sabemos, no Brasil, a tecnologia de dominação racial opera de outra forma. A estigmatização e exclusão são baseados na aparência física dos indivíduos (fenotipia), não na sua ascendência. Assim, pessoas não brancas de pele mais clara, eventualmente, conseguem negociar a sua pertença étnico-racial, sobretudo se tiverem conquistado mobilidade econômica e poder político, como é o caso do vice-presidente.
Como bem resumiu Antônio Cândido, “branco é quem a sociedade considera branco e negro quem ela considera negro. Uma questão de rótulo convencional”¹. Mas é mais que isso. Independentemente das especificidades culturais e nacionais que permeiam a construção social da raça, o branco detém o monopólio desse processo de rotulação.
Antônio Cândido também nos fala da “ilusão brasileira de brancura”, referindo-se ao fato de que o branco brasileiro é, muitas vezes, mestiço, mesmo que em proporções variáveis, porém, identifica como mestiços apenas os outros, nunca ele ou os seus.
Cândido menciona uma entrevista concedida por Leopold Sendar Senghor, na época presidente de Senegal, a um jornalista francês que esteve no Brasil. Na entrevista, Senghor chama atenção para o fato de que o presidente Kubitschek e seus ministros lhe falaram com muita afeição da ama da leite ou da babá negra que tiveram, mas nunca da avó negra que com certeza tinham…
Quero destacar, com essas considerações, que a assunção, pelo General Mourão, de uma identidade racial branca, é fruto uma escolha político-ideológica, portanto, desprovida de qualquer ingenuidade. O mesmo pode ser dito acerca da afirmação de que não há racismo no Brasil.
Diversos(as) intelectuais negros(as) e militantes da questão racial têm evidenciado que a tentativa de encobrimento das desigualdades raciais latentes na sociedade brasileira tem funcionado como uma estratégia extremamente eficaz de perpetuação do racismo.
Trago aqui o conceito de “racismo de denegação”, desenvolvido por Lélia Gonzalez, para uma melhor compreensão do que estamos discutindo.
Lelia usa essa categoria para se referir ao fato que em nosso país, ao mesmo tempo que temos convivido historicamente com um discurso estatal que enuncia a “contribuição” civilizacional do negro e do indígena, busca-se eliminar e limitar as formas de reprodução social daqueles que são o testemunho vivo desses aportes culturais-civilizacionais (justamente os negros e indígenas). Ao mesmo tempo, essa prática é negada por meio do mito da democracia racial.
O racismo de denegação tem, nas sociedades latino-americanas, um lugar privilegiado de expressão, na medida em que são herdeiras históricas das ideologias de estratificação social e racial e das técnicas jurídico-administrativas das metrópoles ibéricas, que desenvolveram, ao longo de séculos, mecanismos de violento controle social e político sobre mouros e judeus, dispensando, a priori, formas abertas de segregação, como se verificou no regime de apartheid na África do Sul e nos EUA, com as Leis Jim Crow.
Fonte: http://www.justificando.com/2020/11/24/general-mourao-e-o-racismo-de-denegacao/