Sonhar mundos possíveis: dialogando com Krenak

Sonhar mundos possíveis: dialogando com Krenak

Da série Leituras de Mundo

Por Siméia de Mello Araújo

Há dias, sonhei com o que parecia um assalto. Arma em punho, ele ria e me intimidava, deliciando-se com o medo que me causava. Olhei, vi, percebi e me enfureci. Mirei a arma em meu peito e pedi que atirasse ou me deixasse em paz, porque eu não tinha mais medo. Desconsertado, se foi. Não antes de me dizer: “Vai, pode ir, mas você sabe que estamos matando vocês, não sabe?”.

Acordei com o peito ardendo como se sentisse o tiro abrindo-o e estilhaçando o meu coração. Mas não tirava a frase dita da cabeça: “Vai, pode ir, mas você sabe que estamos matando vocês, não sabe?”.

Há tempos, nós estamos morrendo, mas também estamos nascendo.

Ao ler Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak, foi exatamente no que pensei.

Há um humano. Aquele concebido pelo homem branco acima dos Pirineus. Este concebeu e concebe um mundo único para si e para tudo que vê. O que não vê, o que não passa por si, não é. Cataloga e nomeia a si e Outrem. Construída sua concepção de humanidade, construiu também para si as verdades que norteariam este humano. Afinal, suprimir tantos impulsos, tanto sentir não é fácil assim, nem mesmo para este homem cortado ao meio, separado entre corpo e mente.

Constrói um Cristo para si, não aquele que supostamente andou pela Galiléia. Ele não serve. Precisa ser um Cristo único, sem natureza, sem fecundação, idealizado e projetado no Pai. Nunca mãe. Mãe é a terra, aquela que acolhe, que dá fruto, que alimenta. Como nos lembra Krenak, “Não tem nada a ver com a imagem masculina ou do pai”, que todas as vezes que aparece, violenta a Terra, domina, depreda.

Talvez, por isso, essa concepção de homem não se estabeleça em paralelo com a terra, com o feminino, pois estas precisam ser subjugadas, dominadas, estupradas, já que, assim como a terra, corpos femininos, todos os dias, nos lembram como somos natureza, gerando a vida em si, dentro de si.

Assim é preciso tudo transformar. Não se estabelece diálogos, porque conversas pressupõem ouvidos atentos ao que se diz. Não há diálogos. Há decodificação de mensagens, transcrição de linguagens sempre a partir de si, já que não há escuta. Nesse eterno transformar, transforma-se e também a natureza.

Mas tudo isso exige trabalho pesado. É preciso carpir, cimentar e reprimir impulsos, elaborar normas de condutas, etiquetas, vestimentas constituindo aquilo que nos ensinaram a chamar de civilização. Civiliza-se e civiliza o mundo. Transforma o que é natureza em civilizado e a si mesmo em civilizador.

Está aí, nessa ideia, embutida também outra ideia: a de que a humanidade em si não é suficiente. Foi essa ideia que deu na cabeça dos europeus de descerem seus morros na busca de civilizar o mundo, colonizando aqui e acolá. “Não, toma essa roubada. Toma a Bíblia, toma a cruz, toma o colégio, toma a universidade, toma a estrada, toma a ferrovia, toma a mineradora, toma a porrada”.

Mas como disse, esse trabalho de civilidade dá trabalho. Não aquele com a terra, com a vida. É o trabalho de artificializar o que é natural. Viva a Revolução Industrial!! Taí os “alimentos ultraprocessados” que não me deixam mentir. Artificializamos até o comer. Só que a natureza é teimosa. Ela costuma despontar seja em fissuras nas calçadas cimentadas, seja nas pulsões, nas recalques freudianos.

Os povos originários são a prova. Esse povo arraigado à terra, que insiste em ser natureza. Assim como aqueles que tem mania de cultuar caçador. Oxóssi, o caçador de uma flecha só. Povo que, por meio de histórias, narrativas, contam histórias de ontem que também são histórias da terra, da natureza e suas energias que circulam entre nós, também chamados de orixás. Afinal somos todos caçadores. Não somos?

É com eles que aprendo que sonhos não é sobre sair da realidade, não é fuga daqui, mas é mergulho em si. Não é utopia sonhar com mundos mais possíveis a quem vem depois de nós, mas é a busca dos cantos, da cura, da inspiração “e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir, cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão abertas como possibilidades”.

É por isso que ouço o que aquele homem branco em meu sonho me diz: Vai, pode ir, mas você sabe que estamos matando vocês, não sabe? Sim, eu sei. Mas nós ainda estamos aqui. Somos natureza. Adubo, semente… Estaremos aqui. 

 

 

Siméia de Mello Araújo é mestra em Língua Portuguesa, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora de língua portuguesa, revisora, articulista e ativista pelos direitos humanos. Possui experiência como professora em formação de professores e, atualmente, é diretora do Instituto Encrespa Geral, pesquisadora das relações étnico-raciais e de gênero, vem atuando como consultora, revisora e roteirista.

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