Que a população mundial atravessa um momento único nos últimos cem anos nós já sabemos, entretanto quais são os cuidados fundamentais para conseguirmos continuar a dar os próximos passos sem nos desequilibrar nesta corda banda que tem sido o cotidiano? Quais são os pensamentos e comportamentos que podem nos ajudar a resistir a um possível adoecimento psíquico em tempos da pandemia do Covid-19?
A renovação das quarentenas decretadas pelos governantes locais evidenciam o fato de que não se sabe quanto tempo durará a maior crise sanitária das últimas décadas, traz com ela uma avalanche de informações (falsas e verdadeiras) sobre os efeitos do coronavírus aumentando o estresse e a ansiedade naquele que foi apontado, pela pesquisa da OMS (Organização Mundial da Saúde), em 2019, como o país mais ansioso do mundo.
Nos últimos tempos, no Brasil, as experiências da vida cotidiana têm sido marcadas por incertezas, crises econômicas, ódio e negatividade como armas políticas, perda de direitos sociais e trabalhistas, além de violações dos direitos humanos. Vivemos permanentemente em contexto de perigo e estresse social.
Ainda assim, diante da pandemia, temos a possibilidade de esperançar, energizar e moldar os nossos comportamentos sem a ingenuidade de nos expormos ao contágio por achar que as recomendações das autoridades em saúde são excessivas, mas no sentido de que essa batalha será vencida.
Nesse ponto, infelizmente, acredito que o Brasil terá uma dificuldade maior que outros países devido à recente troca do ministro da Saúde motivada pela conduta irresponsável do atual presidente que tem agido de forma incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo, dificultando que a compreensão sobre a gravidade da doença chegue a todos os segmentos da população, em especial, àquelas pessoas em maior vulnerabilidade social, para as quais a pandemia pode ter caráter letal.
SAÚDE MENTAL
Segundo dados do Ministério da Saúde, disponíveis na plataforma DataSUS, entre 2016 e 2019, houve uma alta de 9,89% nas internações por transtornos mentais e comportamentais. Foram 237.153 internações no ano passado. Nos dois primeiros anos de 2020, foram 38.382 internações por transtornos mentais e comportamentais, comparando com o primeiro bimestre de 2016, quando foram registrados 35,642 casos, resultando numa alta de 7,68% no total de internações por esses motivos.
Com certeza o adoecimento está para além de determinantes biológicos ou desequilíbrios químicos que precisam ser corrigidos. O povo brasileiro têm adoecido por fatores advindos do desemprego e/ou más condições de trabalho e também por efeitos psicossociais gerados pelo racismo, machismo, LGBTfobia, xenofobia, capacitismo (discriminação e preconceito social contra pessoas com alguma deficiência), por serem expostos a violências ou a barreiras atitudinais que se contrapõem à dignidade e pluralidade humana.
Grande parte dessas pessoas, que já estavam em situação de vulnerabilidade e riscos sociais, como a pobreza e a extrema pobreza ou expostas às violências domésticas ou institucionais – como é o caso da população carcerária e dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas de privação e restrição de liberdade durante a pandemia –, certamente, terá uma intensificação nas violações de seus direitos..
VULNERÁVEIS
A luta contra o Covid-19 exige de todos nós uma leitura racial e social. No Sistema Único de Saúde (SUS), mais de 80% dos pacientes são negros. No entanto, só a partir do mês de abril que o governo iniciou o recorte por raça no levantamento das mortes, apesar de a pandemia ter chegado ao País no dia 26 de fevereiro, com o primeiro caso confirmado.
O governo atrasou na tomada de decisões importantes para proteger a população, assim como atrasou nas medidas de liberação do auxílio emergencial.
Diante da constatação de que erramos enquanto sociedade a fim de protegermos a parcela mais vulnerável, precisamos nos unir, sem nos aglomerar, para restaurar a esfera pública das nossas vidas, afinal, saúde é um Direito Social inerente à cidadania e requer compromisso político tanto de gestores das políticas públicas como de cada uma das pessoas.
É preciso desnaturalizar as opressões que restringem direitos à alimentação saudável, educação de qualidade, saúde pública, cultura, lazer, moradia, acesso ao emprego formal e trabalho decente.
O Estado brasileiro tem sido produtor das desigualdades que adoece grande parte da população, concomitantemente, precariza a saúde pública ao determinar vinte anos sem investimentos, colocando populações pobres em desvantagem no acesso aos cuidados médicos, ampliando as injustiças. Nesse contexto, constatamos que o avanço da doença e dos óbitos nas periferias não são, simplesmente, o resultado de estilos de vida.
Elaborado pela Rede Nossa São Paulo, o Mapa da Desigualdade de 2019 mostra que os paulistanos da periferia morrem até 23 anos mais cedo que moradores de áreas nobres e tem sido exatamente nas periferias de São Paulo que as mortes por covid-19 têm atingido os índices mais altos, lá não há divisão etária para definir o grupo de risco, todos estão suscetíveis.
ESPERANÇA
Tenho dito que, para cuidar da nossa saúde mental neste momento, é necessário acreditar em perspectivas futuras, mantendo a esperança. Temos que verificar a veracidade e dosar as informações que recebemos durante o dia para evitar estresse, aumento da ansiedade, desorganização psíquica e emocional.
Entender o distanciamento social como um distanciamento físico, já que as recomendações das autoridades de saúde são de distanciamento para minimizar o contágio, pode nos manter saudáveis, mas buscando uma proximidade digital com nosso ciclo de amigos, familiares e pessoas com as quais nos relacionamos, seja e-mails, redes sociais, telefone e teleconferências. Vale todo o esforço possível para manter os nossos vínculos afetivos e nossa rotina diária, como os horários das refeições e de dormir. Tudo isso pode nos ajudar a não nos perdemos. Além disso, assumir, igualitariamente, com os demais moradores, as tarefas de limpeza e organização da casa é tão importante quanto tirar um tempo pra cuidar de si.
Validar os próprios sentimentos quando nos sentirmos tristes ou com medo, entendendo como sentimentos associados a sensação de perigo que acontece a maioria das pessoas quando passamos por uma crise não é sinal de fraqueza nem de inabilidade, mas significa apenas que nossa subjetividade fica afetada quando nos sentimos em risco.
Pessoas idosas e crianças podem ficar mais demandantes de atenção nesse momento devido às restrições que impedem sua sociabilização, impactando-os de forma mais severa do que em outras faixas etárias, por isso, merecem toda atenção, cuidado e carinho durante esse período. A dica é conversar de forma simples com eles e repetir informações quando for preciso.
É a partir da decisão de lidar com o próprio estresse que teremos condições de exercer empatia e solidariedade, tão necessárias para avançarmos juntas e juntos, passo a passo nessa caminhada. Ainda, conjuntamente, auxiliarmos na manutenção da saúde mental coletiva tanto para quem tem a possibilidade de ficar em casa e seguir as orientações como para quem as condições de subsistência e moradia impedem o cumprimento rigoroso de protocolos de saúde.