Tenho um priminho que, dentre os 4 a 6 anos de idade, como a grande maioria das crianças, era enlouquecido pela Peppa Pig. Eu, conhecendo sua paixão pela porquinha divertida e ousada, em uma viagem, comprei para ele uma camiseta com a Peppa devidamente ilustrada na sua cor original: rosa.
Ao receber o presente, ele ficou encantado, mas ao mesmo tempo preocupado, porque, segundo sua professora, meninos não usavam rosa. Rosa era cor de menina. Logo, ele não poderia sair com sua camiseta. Esperto como era e ainda é, ele decidiu que a usaria para dormir, já que não poderia usá-la na rua.
Conversando com a sua mãe, percebemos que a dificuldade de ele usar rosa não tinha nada a ver com ele, muito menos com os valores discutidos em sua casa, mas pura e simplesmente com seu processo de escolarização, o que me remeteu a um estudo de pesquisadores de universidades estadunidenses publicado em 2017. Esse estudo investigou o comportamento de crianças de 5 a 7 anos em relação a habilidades intelectuais, sugerindo que os estereótipos, além de surgirem muito cedo, têm capacidade de influenciar os interesses das crianças.
Para o estudo, a um grupo de crianças de 6 e 7 anos, foi apresentado dois jogos – um classificado como para crianças “muito, muito inteligentes” e o outro para as “muito, muito esforçadas”. O conteúdo, porém, era parecido. Qual foi o resultado? Meninas se mostraram bem menos dispostas que os meninos no jogo para crianças muito inteligentes, mas o interesse de ambos foi similar no jogo para crianças esforçadas.
Esse estudo, juntamente com a dificuldade do meu priminho em usar uma camiseta rosa, nos dá a dimensão de como nossas meninas, no processo de escolarização, ainda muito jovens têm incorporado, por meio de estereótipos, a ideia de que não podem ser brilhantes em alguma coisa e de como nossos meninos estão aprendendo, de alguma maneira, que existem cores e jeitos masculinos de ser no mundo, diferentemente de meninas.
Tudo isso me remete a uma questão muito importante: a violência que infringimos a nossas crianças desde muito cedo. De alguma forma, estamos impossibilitando que eles se vejam em pé de igualdade no que diz respeito a suas capacidades intelectuais e, desde cedo, separando universos feminino e masculino. O masculino, dotado de super-heróis, ação e razão; o feminino, da delicadeza do rosa, do cuidado. Mundos diferentes, formas diferentes de ser e estar no mundo.
Entretanto, precisamos nos lembrar que não se trata somente de mundos diferentes, mas de mundos hierarquicamente construídos na diferença. Um, em que a racionalidade e a inteligência prevalecem sobre a emoção, a força sobre a delicadeza, que relega aos homens o direito de agirem, de comandarem; e, outro, às mulheres, com seus mundos rosas, delicados e sensíveis, marcando-as como instáveis demais para o comando, vulneráveis demais e, portanto, necessitadas de proteção.
Além dessas distinções e categorizações, esses rótulos, por serem preconceituosos, já que partem de ideias pré-concebidas sobre o outro, ainda marginalizam lugares que não se encaixam nesses dois polos unicamente possíveis, construindo muros em lugares em que a educação se propõe a construir pontes, possibilidades e perspectivas.
É aqui que a discussão de gênero se faz presente. É essa discussão que chamamos a atenção. Afinal, precisamos construir mundos menos díspares, em que consigamos ser e agir sobre o mundo para além de estereótipos tão limitantes.
Não se trata de destruir valores ou conceitos como família, mas de ampliá-los para que aqueles que ainda não se sentem contemplados e respeitados possam assim o ser; para que nossas meninas consigam se ver dotadas de capacidades para serem e fazerem o que bem entenderem; e que nossos meninos se vejam e as vejam como pessoas da mesma espécie: seres humanos.
Portanto, limitar a discussão de gênero à uma ideia equivocada de “ideologia” não só nos impede de avançarmos em questões tão básicas e imprescindíveis, como de criarmos um mundo mais ameno para nossas crianças onde elas possam construir ideias outras sobre si e sobre o mundo, onde possam ser para além de estereótipos restritivos e nocivos ao seu desenvolvimento pleno, onde caibam gentes de todos tipos e cores, onde a violência sobre o outro não impere, mas que o afeto, valor este imprescindível, se faça presente ainda na infância.
Afinal, construir uma infância mais possível, mais afetuosa e menos limitante é fundamental para alçarmos voos maiores e mais dignos no quesito cidadania, começando por dar a nossos meninos oportunidades de construírem suas masculinidades em quaisquer lugares, sejam estes azuis ou rosas. E que nossas meninas se vejam pra além de esforçadas, mas futuras cientistas, médicas, arquitetas, juízas e desembargadoras. E principalmente que esses dois polos não sejam limites de humanidade.
Enfim, que eles cresçam e sejam.
Siméia de Mello Araújo
Diretora Administrativa
Instituto Ella Criações Educativas
KELLY FERNANDES SANTOS
22 out 2018O que dizer desta escrita tão perfeita, sou a mãe da criança citada, e posso dizer que ele está construindo a sua masculinidade com azul ou rosa, super heróis e carros, a família tem auxiliado da melhor maneira possível!!!! Meus parabéns Simeia pelo belo texto….